Sofia Aparício



Tem os lábios carnudos, a voz doce, o pensamento rápido. Sofia Aparício, modelo e atriz, move-se em círculos onde a beleza tem um papel de relevo, sendo ela tão decisora como decisiva. À Beautyland fala sobre o estigma da idade, sobre a pressão na moda, revela os seus rituais de beleza e narra os meandros da sua profissão, que é representar.




Conversa sem filtros e com poucas hesitações. É natural: Sofia Aparício, de 52 anos e natural de Viana do Castelo, é uma mulher de convicções fortes. Um dos rostos incontornáveis da geração de modelos portuguesas dos finais dos anos 80, atravessa a década seguinte até aos anos 2000, tendo sido pioneira nos primeiros desfiles de moda nacionais inseridos em formatos mais elaborados. Caracterizavam-na o passo decidido, camaleónico e o olhar intenso, traços que ainda hoje conserva, fora das passerelles. Em 1987 venceu o concurso “Miss Wonderland” e em 1992 foi escolhida como vencedora do “Look Of The Year”. No fim da década de 90, tornou-se também atriz – com passagens por novelas como “O Último Beijo” (2002), “Vingança” (2007), “A Impostora” (2016) ou “A Herdeira” (2018), com estreia próxima do filme “What About Love”, de Ana Cavazzana. Fez teatro: “O Caracal”, dos Artistas Unidos, em 2002, ou “O Bosque”, exibido no Teatro Aberto em 2007, destacam-se neste domínio, mas também fez cinema – em “O Contrato”, com direção de Nicolau Breyner, representou Mónica. Musa de criadores como Filipe Faísca ou Dino Alves e rosto habitual nas semanas de moda internacionais ao longo dos anos, sabe-se uma mulher independente, não quis ser mãe, não esconde que se sente maria-rapaz e é apreciadora de arte, tudo curiosidades aleatórias que nos vai revelando nesta entrevista através dos pequenos detalhes. Que é uma pensadora nata e não suporta rotinas, ou que tem uma ideia bem formulada sobre envelhecer – olha para a idade como um número – fala-nos sobre o estigma da beleza, sobre o deslumbre iminente da indústria onde se moveu por mais de 20 anos, e sobre as pressões na pele de uma mulher madura, bela e assertiva. Três qualidades que, sem dúvida, a definem, mas não a encerram.

Quando deu os primeiros passos no mundo da moda era uma Sofia ainda muito jovem, com 15 anos. Desde logo sentiu que a beleza era uma arma poderosa?
Eu acho que tive essa noção na medida em que comecei a ser manequim muito cedo. Também tive muito cedo a noção de que a beleza não é só a parte exterior, a beleza é coerência entre forma e conteúdo. E eu comecei a trabalhar como manequim e a ganhar dinheiro nessa profissão aos 15 anos, tendo começado, por isso, a perceber que isso me daria dinheiro e independência. Daí eu ter entendido que isso poderia ser um utensílio, nunca o usei como uma arma. Mas também pode ser um mundo muito perverso. Se for só uma coisa muito superficial, se não existir por trás estrutura emocional, bases, pode não servir de nada, pode até ser uma maldição.

Essa noção acentuou-se ao longo da sua carreira?
Sim, mas penso que isto se descobre muito cedo, logo quando nos começamos a movimentar neste mundo da moda e da criação de imagens.

Quando fez os primeiros desfiles, dava-se a importância à beleza tal como hoje?
Sem dúvida. Na moda, os cabelos e a maquilhagem são tão importantes como a roupa e como os sapatos. Na realidade, moda nunca é só roupa. Moda – e o que eu gosto na moda e a moda de que eu gosto – é a que reflete o que se passa na sociedade, é quase um espelho do que estamos a viver, do contexto em que vivemos. Por isso é que houve uma altura em que se usava o grunge, depois a economia restabeleceu-se e voltou-se à alta-costura, é cíclico. A moda vai sendo o espelho do que se passa, e é dessa criação que eu gosto. Criação de imagens, atitudes e comportamentos que a moda reflete. Claro que os cabelos e a maquilhagem são indispensáveis para criar o todo.




Numa entrevista, diz que a sua mãe achava que a Sofia era maria-rapaz. Essa feminilidade que hoje se evidencia em si, construiu-a, apurando-a?
Eu não acho que seja incompatível ser maria-rapaz e ser-se feminina. A feminilidade constrói-se com várias coisas, e eu tenho uma parte masculina, outra feminina, e outra andrógina. Era maria-rapaz porque era grande, fazia ginástica e natação, e o facto de ter começado a fotografar construiu a minha feminilidade, mas acho que no fundo continuo a ser uma maria-rapaz.

Sentiu na pele as exigências desta profissão? Privou-se de coisas?
Felizmente agora é diferente, na medida em que os corpos diferentes são cada vez mais aceites, quer os mais roliços ou os mais magros. Quando eu era manequim, a verdade é que tínhamos de preencher determinados padrões. Eu não posso dizer que tenha feito grandes sacrifícios, mas se sabia que ia começar uma semana de moda na próxima semana fazia parte do meu brio profissional, na semana anterior, ter mais cuidado na alimentação, até para a pele ficar melhor e para me sentir mais segura a trabalhar. Nunca deixei de comer nem nunca fiquei anorética. Sempre tive várias discussões acerca disto, até porque eu tenho a certeza de que não é a moda que causa os distúrbios alimentares, mas sim problemas psicológicos que as pessoas têm e que se podem revelar por aí. Eu fui manequim durante mais de 20 anos, e ao longo desse tempo só conheci uma manequim anorética

Isso hoje mudou, esse padrão de beleza…
Hoje em dia, felizmente, todos os corpos são mais aceites, e para mim é mais interessante ver um desfile com corpos de várias formas, feitios e cores, do que “cabides” todos iguais saídos da mesma forma. Porque, lá está, beleza é forma e conteúdo, não é uma coisa exterior perfeitinha e bonitinha.

A simetria já não simboliza beleza?
A perfeição é uma coisa muito desinteressante e chata. A mim despertam-me coisas imperfeitas, com carisma e personalidade.

Quais são os seus ícones, referências, neste mundo?
Admiro alguns profissionais. Eu gostava, como manequins, da Kate Moss e da Linda Evangelista.

No caso da Linda Evangelista, a ex-manequim falou, há pouco tempo, sobre um procedimento estético que correu mal. É importante valorizar os sítios credíveis? Qual é a sua opinião sobre estas escolhas?
Eu acho que não se pode começar pela superfície para resolver os problemas. A primeira coisa que temos a fazer é desconstruir este preconceito que existe em relação ao envelhecer. Existe uma coisa que é o idadismo, que é como se fosse racismo ou homofobia, mas é para com o envelhecimento. É preciso acabar com a noção de que envelhecer é uma coisa má. Envelhecer é incrível! Eu às vezes dou por mim a fazer ginástica, e reparo em partes da pele, do meu corpo, que estão mais flácidas e isso desperta-me imenso carinho por mim. Eu ando de calções e não quero ter as pernas que tinha aos 20 anos, mas também não as vou esconder. A partir de uma certa idade, as mulheres parecem ter vergonha delas próprias. Seja pela flacidez, pelos quilos ou pelas rugas. Devemos começar a achar incríveis as pessoas que chegam aos 50, 70 ou 80 anos, porque elas são lindas. Eu sempre gostei muito de velhinhos, era apaixonada pela minha avó.




Há aquela expressão “envelhecer bem”. Devemos deixar de a usar?
Claro que me cuido e que quero envelhecer da melhor maneira possível. Para combater o género de coisa que aconteceu à Linda Evangelista, temos de começar pelo cerne da questão: o preconceito que existe em relação ao envelhecimento. Eu acho que as pessoas devem fazer tudo o que está ao seu alcance para se sentirem bem com elas próprias. Mas que não sejam coisas impostas pela sociedade. Nós temos de fazer tudo o que está ao nosso alcance para nos sentirmos bem connosco, e garantir que tudo o que fazemos para nos sentirmos bem, nunca nos prejudique. É preciso arranjar um equilíbrio, como em tudo. Depois, é tudo muito paradoxal: quando dizemos que alguém está a envelhecer bem, estamos a dizer que a pessoa parece mais nova do que aquilo que é. Eu gosto muito quando me dão menos idade, mas a verdade é que é muito interessante quando uma mulher de 50 anos espelha que cuida bem de si – mesmo para os mercados de moda ou de beleza.

Em relação ao estigma da idade, ele também existe na representação?
Em relação a isso: é verdade. Já fiz muitas telenovelas em que colegas minhas eram mães de colegas meus que tinham 10 anos a menos. Não sei responder a isto, não sei sequer se o espetador compra essa mentira.

As pessoas continuam a balizar muitos os 50 anos? Sentiu isso?
Não. Para dizer a verdade, vivi 52 anos, mas não sinto que os tenho, na medida em que continuo a viajar com meia dúzia de coisas às costas, sozinha, da mesma maneira, e tenho a mesma energia. Tenho menos paciência. Não senti que os 50 anos foram diferentes dos 48 ou agora dos 52. Acho que às vezes se estigmatizam coisas e se dá demasiada importância. Agora, eu já vivi 50 anos, não vou viver outros 50. Eu não estou a meio da vida, mas isso também não me assusta nada. Eu nunca fiz uma festa de anos. Gosto que exista um dia no ano em que eu receba mimos de gente que gosta de mim, mas não dou importância.
 
Hoje em dia, felizmente, todos os corpos são mais aceites, e para mim é mais interessante ver um desfile com corpos de várias formas, feitios e cores, do que “cabides” todos iguais saídos da mesma forma.


De qualquer das formas, este hype à volta dos 50 acontece mais em relação às mulheres…
Acho que isto também acontece porque é por volta dos 50 anos que a menopausa aparece. Mais uma vez, o preconceito das mulheres na menopausa faz parecer que as mulheres já deixaram de viver, que a vida acabou ou são menos mulheres. A medicina, hoje em dia, consegue aniquilar quase todos os mal-estares que a menopausa possa trazer. Eu nunca quis ter filhos, por isso a menopausa nunca me assustou.

Isso sempre esteve muito esclarecido, para si?
Sim, desde muito cedo. Nunca me conseguiram fazer sentir mal porque foi uma decisão consciente, nunca quis deixar um filho meu neste mundo, são razões mais filosóficas e sociais do que qualquer outra coisa.
 
É preciso acabar com a noção de que envelhecer é uma coisa má. Envelhecer é incrível! Eu às vezes dou por mim a fazer ginástica, e reparo em partes da pele, do meu corpo, que estão mais flácidas e isso desperta-me imenso carinho por mim.


Qual é a sua rotina de beleza, hoje em dia?
Maquilhagem – se não estiver a trabalhar – é raro usar. E eu incluo no trabalho aqueles cocktails, almoços ou jantares de trabalho. Se for jantar com amigos é raro maquilhar-me, no máximo ponho máscara de pestanas. Uso um bom creme, e descobri há pouco tempo uma marca de aparelhos de limpeza de rosto, que uso há quatro meses. Enquanto não me fartar, uso (sim, eu farto-me das rotinas todas). De vez em quando limpo a pele com esses aparelhos, faço máscaras e aplico creme.

A questão de não ter rotinas vem do lado da mudança, de querer viver a vida de forma diferente e ao máximo?
Penso que sim, faz parte da minha personalidade. As rotinas matam-me, eu estive quatro anos a trabalhar no mesmo sítio, era um trabalho ótimo, mas detestei. Foi violento, ir todos os dias para o mesmo sítio. É uma questão de nos aceitarmos como somos, há pessoas que gostam dessa segurança e ainda bem que a têm. As rotinas aborrecem-me de morte.

O que é que costuma fazer, ao nível do exercício físico?
Atualmente tenho o meu amigo Eneias, personal trainer, que nunca me dá dois treinos iguais. Treinamos ao ar livre, um dia o treino é mais ballet, outro é mais pilates, outro mais puxado, com recurso aos elementos de rua. Arranjei o personal trainer perfeito.




Tem saudades de pisar uma passerelle? Tinha rituais?
Não. Eu não sou nada saudosista, gosto muito do que fiz, diverti-me imenso, gosto muito de ter sido modelo, mas saudades não. Não queria nada voltar a ser manequim. Não tinha rituais, só perguntava ao criador qual era a atitude que queria e via-me ao espelho para ver como é que aquela roupa e aquela imagem se conjugavam com essa persona.

Alguma vez sentiu assédio, na sua profissão e fora dela?
Sim. Acho que quase todas as mulheres da minha geração o sentiram. Era como se os homens tivessem direito a invadir o nosso espaço pessoal. Sempre resolvi esse tipo de coisas relativamente fácil, às vezes sendo prejudicada, sim, mas nunca fiz nada que não quisesse fazer. Sempre que me sentia assediada conseguia resolver. Por exemplo, eu tinha pavor de passar numa obra ou de andar de metro em hora de ponta porque era apalpada “até ao infinito”, ou de entrar numa garagem de automóveis. Espero que nesta geração não seja tanto assim.

Talvez aconteça, mais, em espaços digitais, através das redes sociais…
É um assédio digital. Que também é horrível, menos físico, mas igualmente invasivo.

Como é que vê as redes sociais na moda e na beleza? Os filtros vêm alterar os padrões?
Eu percebo pouco de redes sociais. Em relação aos filtros, quem eu sigo nas minhas redes sociais são artistas plásticos, escritores, políticos que eu gosto, revistas e jornais, criadores de moda… Não sigo influencers. O que eu acho em relação a isso, para alguém que quer fazer uma publicação ou direto, o filtro ajuda. Mas se isso se tornar numa obsessão, numa agressão, já está tudo errado outra vez. É tudo uma questão de equilíbrio.


 


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